O holocausto do arquipélago da fome

Mortos invisibilizados, lutos eternos, gargantas sedentas de palavras: Txoru di sisténsia  inda sta bafadu.  

Para quando a queda do muro de silêncio em torno do desastre da Assistência mas, sobretudo em torno das fomes (longas e cíclicas), que ceifaram tantas vidas neste “armazém de gente” em plena Middle Passage, esta “floresta de braços” implorando ao céu chamado Cabo Verde?

Foi há 75 anos que o muro da Assistência na cidade da Praia esmagou centenas de vidas já moribundas devido à extrema inanição. O que nos choca, como escreveu Cabral, é o fato de uma única parede ter dizimado tanta gente, sobretudo crianças. Gente desgraçada, que vinha de todos os cantos da ilha de Santiago para receber aquela que seria, provavelmente, a sua única refeição. No entanto, o desastre não aconteceu apenas naquele fatídico 20 de fevereiro. Na verdade, muitos daqueles que ficaram privados daquela única refeição com a destruição da Assistência, sem ter a quem recorrer, vieram também eles a  morrer. São os sinistrados dos pós Assistência que devem também ser considerados no número de mortos que encheram as valas comuns do país em 1949. 

O que nos choca ainda, seguindo a mesma linha de Cabral, é o descaso ou melhor dizendo a criminosa indiferença da administração colonial portuguesa em relação a esta tragédia. 

As fomes não foram um simples infortúnio destas ilhas de natureza dita “madrasta”, acreditar nisso seria de um determinismo atroz. E seria, outrossim, validar todas essas teses racistas de que somos/fomos amaldiçoados e condenados. 

O que fizemos ao certo, nós que não iniciamos nenhuma revolução industrial, nem explodimos a bomba atómica? Nós que não distribuímos o agente laranja e muito menos o chlordécone? Nós os habitantes de um país cuja única guerra foi exatamente para recuperar um bioma, preservar vidas e o direito à respiração? O que fizemos nós, os resistentes da terra, para que ela nos condenasse? De facto, como dizia alguém, um dos crimes do colonialismo foi alienar-nos de tal modo a ponto de acreditarmos que a nossa simples existência constituía/constitui em si, uma aberração.  

É sabido que a falsificação de todo o tipo de mentiras sobre os povos, a sua história e trajetória, é própria dos projetos coloniais. Veja-se, por exemplo, o caso de Israel (um Estado assassino), em relação à Palestina.

Relativamente às fomes em Cabo Verde, a omissão e a mentira andaram sempre de mãos dadas. O estratagema foi de tal forma bem elaborado que ainda hoje pouco se fala sobre esta sombra que paira no arquipélago. Senão, porque não temos ainda, 75 anos depois, um espaço museológico dedicado a esta questão como muita gente tem reivindicado? Por que razão o Monumento ao Desastre da Assistência, inuagrado em 2006 (meio século depoios do aconteicmento), continua praticamente isolado da memória coletiva dos cabo-verdianos? (Afinal, para que serve um monumento?) Por que razão não se institiu ainda uma data nacional em memória das vítimas do Desastre da Assistência, como propõe José Vicente Lopes no seu último livro sobre as fomes? Por que razão não se introduz nos programas escolares o ensino da longa história das fomes? Por que razão o Estado tergivesa em torno de conceitos (de cartilha internacional) como Segurança Alimentar- tranformando a palavra fome - a única que o faminto conhece e consegue pronunciar para manifestar o que sente no estómago - num tabu político? Por que razão falamos tanto de Djunta mon, mas temos vergonha de falar das fomes e das marcas que imprimiram no nosso imáginário coletivo, relação com os alimentos e com a própria noção de dignidade e solidariedade em tempos de extrema penúria? Tantas perguntas órfãs de respostas.

Contudo, abundam trabalhos de historiadores sobre esta matéria. Existe até um documentário da autoria de Artemisa Ferreira que reúne preciosíssimos testemunhos dos últimos sobreviventes. Um trabalho que, pela sua originalidade, podia ser utilizado como material pedagógico em todos os níveis escolares. Um trabalho que deveria percorrer todas as salas de exibição do país e das diásporas. Um trabalho que nos alerta sobre o dever de memória e faz justiça não apenas aos sinistrados mas também aos sobreviventes que ficaram (sozinhos).

É irónico que, num país onde tudo escasseia, haja tanto desperdício deste tipo de contributos riquíssimos. Cabo Verde é inegavelmente um país onde abunda riqueza humana, gente generosa que, não tendo nada, faz de tudo para colocar o seu conhecimento, experiência e tempo ao serviço das pessoas. Bem hajam esses corpos pensantes, muitos deles artísticos que, remando contra a intempérie neocolonial, os compadrios e caciquismos dos “brancos da terra” repetem no seu dia-a dia “o milagre da criação”, influindo vida à esperança para que esta jamais morra.   

Em Portugal as comunidades negras e afrodescentes têm desafiado as narrativas oficiais em relação a muitas matérias, exigindo a descolonização da história, dos espaços públicos, o direito à reparação etc. O reconhecimento das fomes e, mais concretamente, do Desastre de Assistência de 1949 como um crime colonial, deve estar entre essas pautas. Portugal tem um dever de memória para com aqueles que viram as suas vidas violentamente roubadas pelo seu odioso regime colonial, aqueles que a sua administração deixou morrer porque as suas vidas pouco ou nada importavam. 

Não é possível comemorar os 50 anos do 25 de Abril sem lembrar as fomes em Cabo Verde e reconhecer o crime. Tampouco é possível celebrar o centenário de nascimento de Amílcar Cabral sem lembrar, de forma séria, as fomes em Cabo Verde.

Se houve uma razão muito concreta para Cabral, ele que estudou agronomia, dar os primeiros passos para a luta, foi a constatação da desgraça que as fomes coloniais constituíam. A independência foi também “para nunca mais morrermos de fome”. Foi-nos doutrinado que “nem só de pão vive o homem”. Mas esqueceram de nos dizer que é sobretudo de “pão” que a vida do ser humano depende e que um espírito, por mais forte que seja, num corpo enfraquecido (pela fome) não passa de sombra, um cadáver andante como relatou, de forma visceral, Luís Romano em Famintos.

Esquecer é matar vezes sem conta aqueles que foram assassinados depois de terem vivenciado “horrores sobre o bafo do silêncio”. Não esqueçamos que, o espectro/sombra da fome paira ainda sobre as ilhas, ela está aí à espreita…  ainda não vencemos esta luta. 

Romano como que em jeito de alerta, escrevia “Povo farta olho depressa, como um menino. É mesmo. Povo é como menino.(…) Maldade fica sem lembrança, quando menino está contente. Fartura já fez homem de campo esquecer tempo mau”. E o Estado entretém este esquecimento quando precariza  a vida do “povo-gente”.  Por mais que a retórica discursiva e a cosmética estatal tentem esconder, o “poder deformante da miséria” que é denunciada em Famintos é ainda visível nas mesmas estradas outrora  percorridas por procissões de “esqueleto falantes”, cujos estômagos continham “nada mais do que ar”.

É também visível a opulência daqueles que, caso pudessem, venderiam o povo tal como têm vendido o txon. Aquela minoria rica afrofóbica, “que habita as partes altas da cidade enjaulada com grades e aparentando um enorme jardim zoológico de luxo com os seus aparelhos de vigilância”, os donos do poder que gerenciam a democracia, distribuido-a a conta-gotas ao povo, apenas na hora de votar, como escreve Tchalé Figueira no seu mais recente romance, Txon vendido, um retrato certeiro de uma comunidade política caboverdiana ainda capataz.  

Que o muro do silêncio desabe sobre todos guardiões do império. 

CRIME

“Armazéns de gente.

Bocas cantando dramas na variedade dos casos.

Florestas de braços.

Mãos pintalgando o vácuo em ademanes.

Loucos distraindo a plateia dos cegos.

Palhaços rindo nos volteios da Fome

trazendo no íntimo o amargo dos que ficaram

os anónimos

perdidos pelas ruelas dos povoados

ou chicoteados pela mão da Assistência.

Desenhos animados.

Atenção Grande Público

Estiagem! Secas!

Gente encurralada.

Homens transformados em sombras empalhadas.

Ocasiões únicas para estudos anatómicos.

Exames de esqueleto grátis.

Aproveitar que o Circo é só de Seca em Seca.

Vejam isto

Um menino comendo excrementos de cães.

Apreciem o poder deformante da miséria.

Aqui

Uma jovem violentada por uns bagos de milho.

Olhem os loucos! Não percam o grande conjunto desta tragédia”

Poeta Africano, Luís Romano, Famintos

por Apolo de Carvalho
Mukanda | 21 Fevereiro 2024 | Assistência, Cabo Verde, colonialismo, fome, Praia